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Jornalista e fundadora do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), que acompanha lutas sindicais há mais de quatro décadas, destaca importância do Primeiro de Maio
Rosângela Ribeiro Gil
Redação ABCP
Foto acima: Pintura "O Quarto Poder", de Giuseppe Pellizza da Volpedo
Santos (SP), 1º de maio de 2025 – Como falar de história num tempo congelado no presente? Como falar de luta coletiva num tempo de indivíduos consumidores? Como falar de classe trabalhadora num tempo de (falsos) empreendedores? Se ficou difícil, então precisamos falar. É a proposta desta série Primeiro de Maio: histórias de luta, da ABCP, contar e lembrar as lutas de combativos trabalhadores e trabalhadoras sob as condições de trabalho as mais difíceis.
Série “Primeiro de Maio: histórias de luta”
* Trabalhadoras e trabalhadores, uni-vos! – Professor Ricardo Antunes
* Luta coletiva sempre será necessária – Sociólogo Clemente Ganz Lúcio
* Vamos estar atentos e fortes – Jornalista e historiadora Claudia Santiago
A “espinha dorsal” dos grandes movimentos de trabalhadores do Brasil e mundo afora foi, e ainda é, a jornada de trabalho. Podem falar que nós, trabalhadores, não existimos mais. Mas todos os dias o capital precisa da nossa força de trabalho para lucrar. Ele é que precisa de nós para continuar a existir.
Nos querem invisíveis, mas somos de carne e osso. Podemos estar varrendo ruas, na portaria de prédios, na bancada de um comércio, na plataforma de petróleo, entremuros de uma refinaria, no escritório ou a serviço de um aplicativo.
Não importa o lugar e o modelo – presencial ou online. Somos trabalhadores e trabalhadoras. Temos sonhos. Temos direito a ter direitos. Queremos lazer, estudar ou apenas descansar. Queremos ter vida além do trabalho.
Claudia Santiago nos traz essa dimensão humana da nossa gente trabalhadora. Há pelo menos 40 anos, a jornalista e historiadora acompanha o movimento sindical brasileiro e de outros países. Mais recentemente acrescentou ao seu trabalho profissional e militante os movimentos e coletivos sociais. Ainda como assessora de imprensa da CUT Rio de Janeiro, nos anos 1980, pode ser “testemunha ocular” de lutas e ações de categorias as mais diversas. Hoje, completa três décadas à frente do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), com sede no Rio de Janeiro, mas com atividades em todos os estados brasileiros.
O NPC é constituído por um grupo de comunicadores, jornalistas, professores universitários, artistas gráficos, ilustradores e fotógrafos que trabalham com o objetivo de melhorar a comunicação, tanto de movimentos comunitários ou populares, quanto de sindicatos e outros coletivos.
Claudia Santiago cumpre agenda intensa de cursos, debates e entrevistas em sindicatos de trabalhadores em todo o País. O seu entusiasmo pelas lutas da classe trabalhadora é combustível para quem está desanimado diante de tantas adversidades. Com sorriso característico e voz firme, por onde passa ninguém fica indiferente à força dessa mulher.
Ler a sua entrevista nos ajuda a compreender os tempos atuais, mas, principalmente, é um farol para nos mantermos fortes para as batalhas. Boa leitura!
ABCP – Claudia, trazendo o seu olhar de jornalista, coordenadora do NPC e que acompanha de perto o movimento sindical há muito tempo, como você descreveria a classe trabalhadora brasileira a partir dos anos 1990, quando se tem, com mais intensidade, a implantação de medidas de cunho neoliberal, no país, e o início de ondas de reformas trabalhistas na perspectiva flexibilizadora de direitos sociais e trabalhistas?
Claudia Santiago – Recentemente escrevi um capítulo no livro ”Cultura e filosofia da Práxis” (Editora Mórula), organizado pelo professor da Escola de Comunicação da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], Eduardo Coutinho. No artigo, falei da década de 1990, período que vivi intensamente as lutas sindicais, o neoliberalismo e as mudanças que ocorreram no mundo do trabalho. A cantilena era a mesma em quase todo o mundo: fim de qualquer regulamentação no mundo do trabalho; fim da carteira de trabalho; desregulamentação; cada um por si e entregue a sua própria sorte na selva capitalista.
Embora o projeto neoliberal, no Brasil, tenha encontrado um sindicalismo forte – de acordo com dados do Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], de 1978 a 1990, nosso país foi o campeão de greves no mundo –, o perfil da nossa classe mudou muito. Em 1985, havia mais de um milhão de bancários contratados e imposto sindical. A Volkswagen chegou a ter 48 mil trabalhadores contratados via CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], em 1980.
Giuseppina de Grazia, no livro “Da organização pela base à institucionalização” (EditoraNPC), fala da dispersão e flexibilização do processo produtivo realizado em pequenas oficinas terceirizadas, em domicílio, em falsas cooperativas, ou por “conta própria”, que fragmentaram a atividade física e a consciência coletiva. Esse projeto chegou a tal nível de sucesso graças a uma tremenda investida ideológica dos meios de comunicação de massa, que hoje o trabalhador contratado com base na legislação trabalhista é ridicularizado enquanto o empreendedor é valorizado.
Descrever a classe trabalhadora não é tarefa fácil. Mas uma pesquisa do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], divulgada em 2023, revela que, no País, 60,1% da população vivia com até 1 salário-mínimo em 2022 e 31,8% tiveram renda entre um e três salários mínimos per capita mensalmente (IBGE, 2023). Um dado já temos: os salários no Brasil são muito baixos.
Após a reforma trabalhista de 2017, a precarização e a informalidade aumentaram. Empresas aumentaram as contratações de trabalhadores como pessoas jurídicas e não com base nos artigos da CLT. Consequentemente, subiu o número de processos na Justiça do Trabalho que pedem o reconhecimento de vínculo empregatício.
E agora, às vésperas do 1º de maio, o ministro do STF [Supremo Tribunal Federal], Gilmar Mendes, resolveu o problema de uma forma muito simples: ele suspendeu a tramitação de todos os processos que discutem a “pejotização” no País até a Corte dar uma palavra final sobre a existência de vínculo.
O ministro Gilmar Mendes justificou a suspensão com base na sobrecarga da Corte causada pelo elevado número de reclamações trabalhistas.
Eu descreveria a classe trabalhadora brasileira como uma gente que trabalha muito, gasta muitas horas no transporte ruim, ganha mal, está precarizada e que briga desesperadamente para ser feliz nas rodas do tambor de crioula, de samba, coco e maracatu. E nos bailes da periferia, como bem diz o funk carioca “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, da dupla Cidinho & Doca, que fez também o “Rap das armas”, não coincidentemente no ano 1994, bem no meio da década de 1990.
ABCP – Agora, como historiadora, como você traçaria um paralelo entre as lutas da classe operária dos séculos XIX e XX e dos tempos atuais?
Claudia Santiago – Essa é fácil. Fiz isso também no artigo para o livro citado acima. Vou repetir o que digo no artigo. A eleição de Rick Azevedo (PSOL) à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, nas eleições municipais de 2024, com ampla votação, nos ajudou a pensar sobre a centralidade do trabalho na vida das pessoas. Seus slogans de campanha foram “Vida Além do Trabalho” e “Fim da jornada 6x1”.
Sua defesa da redução da jornada de trabalho trouxe para o centro do debate o velho e atual Marx, no livro “O Capital”, que a descreve como “uma luta de vários séculos entre o capital e o trabalho” (Paris: Flammarion, 1968, p. 203).
A redução da jornada estava presente, em 1866, no Congresso Geral dos Operários, em Baltimore, Estados Unidos. Lá foi dito que o primeiro passo para libertar o trabalho da escravidão capitalista era a obtenção de uma lei que limitasse a jornada de trabalho a oito horas.
No mesmo ano, na Suíça, um encontro Internacional de trabalhadores declarou que a limitação da jornada de trabalho é a condição prévia, sem a qual todas as demais aspirações de emancipação sofrerão inevitavelmente um fracasso. Propomos que a jornada de 8 horas seja reconhecida como o limite da jornada de trabalho.
BCP – Você viaja o país fazendo cursos para sindicatos de trabalhadores das mais diversas categorias profissionais – da iniciativa privada ao funcionalismo público. Ou seja, tem contato mais direto com quem está no movimento sindical. O que você vê nesses contatos? Quais as potências e quais as fragilidades?
Claudia Santiago – Essa é mais difícil. Analisar o passado nos dá mais segurança, temos a nosso favor o tempo e a visão de outras pessoas que também estudaram o período. Mas eu apostaria que nossa fragilidade continua sendo a comunicação. E estamos ainda mais frágeis neste campo do que éramos no mundo do impresso e no mundo das fábricas e escritórios. Havia uma aglomeração de trabalhadores nos locais de trabalho o que facilitava a comunicação e uma ágil imprensa sindical. Na década de 1990, nos sindicatos filiados à CUT, havia seis jornais sindicais diários com uma tiragem semanal de 600 mil exemplares, entregues de mão em mão.
Hoje há dispersão nos locais de trabalho, os meios de comunicação continuam monopolizados, e temos uma internet totalmente nas mãos de meia dúzia de empresários estadunidenses.
Se a produção está pulverizada em pequenas oficinas terceirizadas, em domicílio, em falsas cooperativas, ou por “conta própria” como dissemos acima, onde encontramos a classe?
Outro gargalo que vejo é no desconhecimento da história das lutas dos trabalhadores pelas novas gerações.
A maior potência que eu vejo está entre as chamadas minorias. As mulheres sindicalistas estão indo muito firmes na luta e, cada vez mais, entendendo o que é o machismo. Elas não aceitam mais que os homens as expliquem como as coisas funcionam. Não é à toa que o vice-presidente dos EUA tenha indicado para um cargo de confiança no Departamento de Educação um professor que declara que mulheres não podem exercer determinadas profissões, como direito, medicina e engenharia ou se candidatar ao Prêmio Nobel.
E eu sinto, entre a juventude negra, uma vontade muito grande de arrebentar as correntes.
ABCP – A sua mensagem de Primeiro de Maio para uma sociedade brasileira, e mundial, atravessada pela serpente da extrema-direita, do fascismo?
Claudia Santiago – São duas. Uma é “Façamos nós com nossas mãos tudo o que a nós nos diz respeito”. A outra, vamos criar conselhos nos nossos bairros, quilombos e periferias que ainda não os tenham e nos organizarmos também pelo local de moradia. É aqui que vamos encontrar os 60% da população que ganham até um salário-mínimo e circulam pelas cidades limpando rua, fazendo entregas, cozinhando, nas portarias, no comércio, nos serviços e nas fábricas. Vamos estar atentos e fortes. Nas redes, nas ruas e nas necessidades dos nossos colegas de trabalho e dos nossos vizinhos. Que vivan los sindicatos!